A ÁGUA ESTÁ AQUI NA MINHA BARRIGA. PODEM TIRAR SE QUISER

O locutor tem a voz grave, cerimoniosa, dos que proclamam os noticiários oficiais na Rádio Geral. Um Civiltar exibe um vidro de água. O único que restou inteiro. Água do Tucumã. Onde, diabos, ficava esse Tucumã? Imagens do prefeito, do chefe estadual, do diretor do museu. E a voz monótona.

Às catorze horas de hoje, o Museu dos Rios Brasileiros, conhecido popularmente pela designação de a Casa dos Vidros de Água, localizado no que antigamente foi o Largo do Arouche, recebeu uma afluência fora do comum. 

De repente, para espanto dos vigilantes, centenas de pessoas começaram a entrar e a se espalhar. Aparentemente, queriam apenas olhar os milhares de litros que continham as águas dos rios, riachos, ribeirões, nascentes, lagos, lagoas, fontes e
olhos de água de todo o Brasil. A Casa dos Vidros de Água foi o mais completo e admirado museu hidrográfico do mundo, apreciado por especialistas do universo inteiro, que ali sempre fizeram suas pesquisas hídricas. Organizado na década de
oitenta por cientistas da Universidade de São Paulo, do Rio Grande do Sul, do
Espírito Santo e da Paraíba, teve a colaboração de pesquisadores de todo o país.

A cooperação popular foi grande. Levou-se doze anos para se atingir a perfeição
atual. Em dezenas de salas, cada uma abrangendo uma região, podiam-se ver os
litros, de colorações diferentes, além de gravuras, fotos, mapas, gráficos, legendas.
A biblioteca e a filmoteca completavam o conjunto. 

A discoteca guardava relíquias, como o ruído das cachoeiras, principalmente da Foz do Iguaçu, o som da extinta pororoca, o murmúrio de regatos. Quando os vigilantes se
despreocuparam, relaxando a fiscalização, tudo aconteceu. Em questão de
minutos. Sem que houvesse qualquer chance de impedir. As pessoas passaram a abrir os vidros e a beber a água. Bebiam e se molhavam. Saíam com as roupas ensopadas. Quando os Cilviltares chegaram, minutos depois, sobrava um só vidro
fechado. A maioria dos depredadores fugiu, arrebentando portas e janelas. Alguns foram presos. Suspeita-se que tenham sido aliciados por alguma organização.

Sabe-se que, no começo da tarde, espalhou-se o boato de que a Casa dos Vidros de Água estava sem corpo de guarda. E que havia muita água estocada lá dentro.

Um dos presos, durante a verificação, disse:

– Quem é que queria ver água de rio? A gente tinha sede, isso sim. Então fomos beber a água que era nossa por direito. Eu procurei a água de um riacho que passava atrás de minha cidade. Um rio onde nadava quando criança. Foi dele que bebi. A água está aqui na minha barriga. Podem tirar se quiser.

Pessoas entrevistadas disseram que ninguém suportou o calor hoje. Foi o dia
mais quente do ano, registrado nos institutos oficiais. O sol deve ter alterado o
comportamento de todo mundo. Meteorologistas acentuam que a temperatura
tende a subir, ainda mais que nos aproximamos dos meses que, em outros tempos,
correspondiam ao verão. O Esquema está de prontidão para tomar duas
providências: impedir que a migração para esta cidade continue, uma vez que ela
é causa de graves problemas; em segundo lugar, adotar medidas, como a
construção de gigantesca Marquise para proteger o povo do sol e da intensa onda
de calor que se abate sobre o país.


Trecho da Obra: "Não Verás País Nenhum" de Ignácio de Loyola Brandão (1981)

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